A narrativa construída, sobretudo no século XX, considerou a princesa Isabel como protagonista do processo de abolição e até mesmo como defensora da causa abolicionista. Essa visão construída pelo ato da assinatura, alimenta a ideia de que a abolição foi uma dádiva do Estado Imperial, e acaba esquecendo que o próprio Estado, representado na figura de D. Pedro II, era proprietário de escravizados. A obra de Pedro Américo A libertação dos escravos 1889 representa bem essa visão, onde no centro a imagem há uma figura com um manto verde representando o Estado e os escravizados à sua volta em devoção; acima, uma cruz reluzente paira no ar mostrando a presença divina da igreja. Nessa imagem, parte da narrativa conservadora onde é construída a ideia de que a igreja e o Estado concederam a liberdade aos escravizados.
(Lei Áurea, 1888. Fonte: IMS)
Nada mais irônico pensar que, por mais de três séculos a
igreja e as forças políticas desta Terra de Santa Cruz subjugaram milhões de
pessoas, construíram narrativas sociais e culturais para a manutenção dos
privilégios gerados pela estrutura da escravidão (sendo o último país a abolir
a escravidão), constituíram verdadeiras guerras para apagar qualquer fagulha de
resistência, agora, disputam as narrativas entorno da abolição.
A canetada declarou extinta a escravidão, no entanto, na Lei
Áurea não foi pensado nenhum projeto de emancipação social para a inclusão
dessas pessoas na sociedade. Contendo somente dois artigos que diziam sucintamente:
Artigo 1: É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil
(Assinatura da Lei Áurea no Paço Imperial. Fonte: IMS)
Não foi logo após o
amanhecer que todos os escravizados foram libertos. É impossível imaginarmos
que uma estrutura escravista tenha simplesmente ruído com a assinatura de uma
lei, e que no dia seguinte, todos estavam livres e felizes. Muito pelo contrário,
diversas fazendas ainda continuaram a utilizar a força de trabalho de
escravizados por anos. Além disso, caiu sobre os ombros desses sujeitos o peso
de toda a estrutura escravista que perdurou por séculos, construindo
imaginários, cultura e o racismo.
Com isso, se depararam com uma sociedade onde não tinham
acesso à moradia (onde se viram obrigados a morar nos morros em condições
precárias; nem a trabalho (que muitas vezes integraram a trabalhos ainda em
condições escravistas); nem educação (em um momento onde a educação era usada
como forma de exclusão) e muito menos saúde (em surtos de epidemias). De modo
que, tudo que a população negra conquistou, foi por meio de lutas. Nos anos de
1920, organizaram diversos movimentos em defesa da educação para negros, por
exemplo. Nesse sentido, nenhuma política de inserção social foi pensada pelo
Estado, e suas ações caminharam mais no sentido de mascarar o problema social,
em criar leis racistas como a lei da “vadiagem” do que realmente contribuir
para a solução do problema.
Por fim, nunca é demais dizermos que, a abolição da
escravatura foi um processo de resistência das pessoas escravizadas homens
negros, mulheres negras que lutaram cotidianamente, seja com resistências
moleculares e negociações ou revoltas maiores, para que tivessem sua liberdade,
conseguintemente, a queda da escravidão. Desse modo, as revoltas das pessoas
escravizadas foram parte do cotidiano e constituiu uma luta demorada, mas que
foi muito importante. Fato que passou a
ser contemplado no horizonte de expectativas, mobilizando também a opinião
pública que se viu contornada pelos movimentos abolicionistas. Se a abolição
não foi uma benesse do Estado e muito menos das elites, ela representou uma
luta histórica desses sujeitos e que continuam até hoje lutando para romper com
esse racismo estrutural em nossa sociedade.
CHALHOUB, Sidney Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, SP: Cia das Letras, 1990.
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos: os limites da negociação.
COSTA, Emilia Viotti da. A abolição. 2. ed. São Paulo: Global, 1986.